TUGAZOMBI

cadáver semi-frio com cereja na terceira narina

quarta-feira, fevereiro 28, 2007

Carlos Calvet (2000)
























a primeira imagem é a do bebé ver
desaparecido o brinquedo debaixo
do tapete
para desconhecida dimensão do universo

depois surgem esboço a esboço

as paredes
comem área cada vez mais paredes
fortificam-se pelo tempo

mais baças do que verdes

ainda presas aos pés

as raízes de todas as plantas
ainda viva a sabedoria das árvores

no espírito
ainda intacto o contorcionismo das heras

e madressilvas
nos músculos

os reinos beijam-se

a herança dissimula-se
profunda e invisível prevalece
até que o homem cansado e velho
abraçado à rocha e dela já parente
confesse o berço vegetal

nos primeiros nós da carne

domingo, fevereiro 25, 2007

MENEZ :1987: do cheiro dos livros. procurando a frase.


sexta-feira, fevereiro 23, 2007

Graça Martins (2001)


às costas minha banheira trémula
carapaça às avessas explica-a
certo fumo encarnado que algum fungo verteu
eu no aconchego da água quente
feto em volta da barbatana
que por sórdido umbilical lhe bebo
grossa gelatina para bom crossing-over

minha trémula banheira ao deus-dará
raso arranha-céus fumegante no qual
alforrecas se armadilham muito janotas

pelo som coso velocidades a objectos enquanto
caracol brincando à boca dum canhão de sal
e lá longe junto ao bidé
jaz uma tartaruga duas vezes morta
exibindo na sua podre carapaça
o rosto redimensionado de tristan tzara

quarta-feira, fevereiro 21, 2007

«Só o cavalo, só aqueles olhos grandes/de criança, aquela/profusão da seda, me fazem falta.»

[Eugénio de Andrade]
.
.
Espiga Pinto (1990)

terça-feira, fevereiro 20, 2007

Georgia O'Keeffe (1930)

bendiga-se verde a folha nova
com os cegos cloroplastos da fortuna

olhai-a encurvar ampla planície
trazendo sossego do caule
que o sopro minoritário estende a domínio duplo
duas cores: uma clara-marialva por ressalva
a outra escura-grávida de grave sanguinidade

todo o pedúnculo refaz a voz do rio
e ouve-se o rebolar miudinho
dos ovos no cálice mas
cá fora é um barco estridente
rasga águas à procura de novo amanhecer

que lagarta beijará ao contrário o amor
espelhado nos alicerces do casulo?

sexta-feira, fevereiro 16, 2007

CARAVAGGIO (1607-1610)




















amadurecerá
o crânio na
bandeja

chorará
a gota pelo
chifre de luz

acorrerá
enamorado
o minotauro

[eixo a eixo
os olhos repetem
o mundo]

madrugará
uma canção

terça-feira, fevereiro 13, 2007

James Whistler (1871)




















é o rumor ósseo que lhes leva
o leite à boca
crescem do tronco expandido da mãe
a acalentá-los em sobressalto
e bem lhe serve o deserdado xaile
esse acordeão de renda onde se somarão
enganos doces

os pulmões enrodilham-lhe
os filhos
ela os sabe perdidos
contudo enrijesse-lhes
os ossos

num estremecido fôlego
fortes foles filiam-se
aveludados no colo

são as bodas
dum voo maior

domingo, fevereiro 11, 2007

Cargaleiro (2006) com fábula de Fiama

A névoa disse à árvore:
tu, cedro, perdes a tua forma,
se eu te abraço. Disse
o cedro: o Sol ama-me mais,
toma o meu corpo inteiro
no seu corpo e dá-lhe
ser, figura.

quinta-feira, fevereiro 08, 2007

«Que filtro embriagante/Me deste tu a beber?/Até me esqueço de mim/E não te posso esquecer...» [Florbela Espanca]






Artur Bual (1996)

terça-feira, fevereiro 06, 2007

ROLF NESCH (1935-36)

















MAR: (HA)VER PARTIR D'ORVALHO E NUNCA CHEGAR

sábado, fevereiro 03, 2007

NADIR AFONSO (2000)

















dir-lhe-ia peça por fragmento farejada
hoje firme e adensa-se o estreito carbonífero
amorfo cromossoma pelo toque
relembrada cinza nas sementeiras
ao pó que é pólen das magias

arderam-se-me as sandálias
e persegue-me esta centopeia cleptomaníaca
com baralhos de cartas nos apêndices

[traz o horror das visões]

de aborrecer-me no deslumbre dir-lhe-ia
«quero mais do que pequeno lume»

sexta-feira, fevereiro 02, 2007














Mário Cesariny

se por mera fenda albergasse a mestria do musgo
delegaria à resina a missão de essência mostrativa
uma espécie de passaporte livre para a prisão que é
o sangue podre

fora a sapiência escavada esmeralda no ventre
a designar vernáculo no estrume que se amanha
quente e inodoro na brancura saloia da missão
e é o que interessa como persiana a tempo inteiro

a fonte não brota nem se deita
antes morde com a boca inventada no medo alheio
e bebe-se sombra com sede de cor
mas a água é cinzenta na sua missão biológica

quinta-feira, fevereiro 01, 2007

ISMAEL NERY [poema-i-magem]






















Poema para Ela

Acabaram-se os tempos.

Morreram as árvores e os homens,
Destruíram-se as casas,
Submergiram-se as montanhas.
Depois o mar desapareceu.
O mundo transformou-se numa enorme planície
Onde só existe areia e uma tristeza infinita.
Um anjo sobrevoa os destroços da terra,
Olhando a cólera de um Deus ofendido.
E encontrou nossos dois corpos fortemente enlaçados
Que a raiva do Senhor não quis destruir
Para a eterna lembrança do maior amor.