TUGAZOMBI

cadáver semi-frio com cereja na terceira narina

segunda-feira, outubro 31, 2005

palmilhar a noite para adormecer em ti.

Francis Bacon (1966)

domingo, outubro 30, 2005

Salvador Dalí (1944)

O HOMEM DO PIANO

O BRANCO E O NEGRO. O SILÊNCIO INTEIRO.PROFUNDO.
MACIO.PALPÁVEL.
E A CABEÇA VAZIA. SÓ MÃOS. AS MÃOS E O CORPO. AGORA
NU.EXPOSTO. PRÓXIMO DELA. DA MORTE.
RESPIRAVA-LHE O HÁLITO. DENSO. DOCE. DARDO A ESPETAR-LHE
UM DEDO DE AÇO NOS OLHOS.QUE FECHOU.
ATACOU ENTÃO O PIANO. NADA DE CLÁSSICOS. NADA QUE
EXISTISSE ANTES. UMA ORGIA DE SONS.UM FESTIM. UMA GRUTA.
E O SEXO A DANÇAR-LHE NAS MÃOS. E TOCOU. TOCOU ATÉ
TOCAR SANGUÍNEAMENTE O TAMBOR DA GUERRA DO FOGO. E
DEVAGAR PORQUE MORRIA DEPRESSA E TODOS OS GESTOS ERAM DE
FOME COMEÇOU A LAMBÊ-LA. COMO UM CÃO COMO UM LOBO
SEDENTO E ÁVIDO VADIO E SELVAGEM. PRIMEIRO A RAÍZ DOS
CABELOS FULVOS COMO O SANGUE ENROLADOS NA TESTA
ARREPIADOS NO CONTORNO DO ROSTO. DESCEU AOS OLHOS E
SELOU-OS COM FIOS DE BABA. CAIU-LHE NA BOCA. MERGULHOU-A
DE ÁGUA E FEZ-LHE UM NINHO DE SALIVA DESDE A RAÍZ DOS
DENTES À SEARA DA LÍNGUA AGORA DANÇARINA DESVAIRADAMENTE
SERPENTE SEM VÉUS NEM ESPADAS.
APENAS BOCA. PROFUNDA. MOLHADA.
O MAR O MAR O MAR A NAVEGAR-LHE NA GARGANTA.
DEPOIS A VEREDA. O PESCOÇO INCLINADO ABRINDO SULCOS E
ANGULOS E VALES DE PELE ESCORREGADIA.
E ESCORREGOU LENTAMENTE SOBRE OS SEIOS ALTOS.RETIROU A
FORMA TRIANGULAR COM BEIJOS DE OSTRA. BEBEU-SE NO SUOR
QUE ORVALHAVA COMO CHUVA TÍMIDA NA PELE. E PAROU.

O CORAÇÃO ATACAVA OS OUVIDOS. TOCAVA STACCATTOS
INTENSOS. DESCONFORTÁVEIS. ZUMBIDO DE PÁSSAROS EM CIO A
CERCAR-LHE OS OMBROS. E A MORTE A APROXIMAR-SE. ALTIVA.
URGENTE. INDOMÁVEL. GÉLIDA. SURDA.

(MOZART MOZART TOCA-ME A LACRIMOZA)

"E SENTOU-SE. BEM EM CIMA DO PIANO. ALARGANDO-ME O OLHAR
PARA O MEIO DAS PERNAS. QUE ABRIU. COM A TEATRALIDADE DE
UM GODOT QUASE TERNO. E ALI ESTAVA A MINHA CASA.
NAQUELE SEXO OSTENSIVAMENTE VERMELHO. ERA DIA DE
COLHEITA. OS MORANGOS CRESCIAM. ROSADOS E
PALPITANTES.VIA-LHES A TEXTURA DE LÍNGUA E O CHEIRO
INQUIETANTE. ÉBRIOS DE UM VÍCIO OPALINO ESTREMECIAM À
MINHA FRENTE COMO LABAREDAS . QUERIA TOCAR. TOCAR-LHES.
ATIRAR-ME INTEIRO NAQUELE CHÃO DE AGOSTO. E INICIEI-ME
ENTÃO. ANSIOSO E REDONDO ABRI A PORTA FENDA DA MINHA CASA
SABENDO QUE A SEGUIR MORRERIA QUANDO ELA
FECHASSE AS PERNAS. E O TEMPO. E O PIANO. E O SILÊNCIO.
TUDO.
REVI EM SEGUNDOS TODA A MINHA VIDA DE ENGANOS E DE FACAS.
E SEM MAGOA NEM ARREPENDIMENTO ENTREI. TODO.
ENTUMESCIDO. VIOLENTAMENTE ACESO. NU. A SENTIR-ME
MADURO. A EXPLODIR. A VIR-ME. COMO A CHUVA. COMO O MAR
SOBRE A AREIA. EM TEMPORAIS INESQUECÍVEIS.
ENTREI. TODO.

E ELA FECHOU AS PERNAS. ANOITECEU. E O TEMPO CAIU. AINDA
OUVI A AVÉ MARIA DE SHUBERT. MORRI.

E O PIANO TOCOU SOZINHO.


Isabel Mendes Ferreira
in www.mendesferreira.blogspot.com

Lovis Corinth (1912)

sábado, outubro 29, 2005

com as asas...

com as asas dobradas assim
aqui
num elo vincadas
percebi
qu'a saliva das abelhas
degluti
lendo a valsa dos grãos de pólen
aprendi
que só engolido a pensar mel saberei que
morri

Porfírio Al Brandão
in Sombras Ombreiam Lugares
pré-publicação 2005

sexta-feira, outubro 28, 2005


da morte.

Chagall (1945)

pra ti isa!

quinta-feira, outubro 27, 2005

pudesse eu morrer. em ti. pudesse eu morrer. sem flores. preces. coisas assim. morrer morrendo, apenas.

quarta-feira, outubro 26, 2005

PEDIRAM-ME PALAVRAS. ENCONTREM-NAS. pinto ribeiro.

assim olho...

assim olho desfibrando clarões
gotejo partituras e planam nelas
naves auriculares com antenas
ao tacto hipersensíveis
meço intenções na força cromática
a fixar aroma e textura
no esqueleto da tela
espontaneamente fluida

Porfírio Al Brandão
in Sombras Ombreiam Lugares
pré-publicação 2005

Joan Miró (1936)

A NOITE

A noite veio de dentro, começou a surgir do interior de
cada um dos objectos e a envolvê-los no seu halo negro.
Não tardou que as trevas irradiassem das nossas próprias
entranhas, quase que assobiavam ao cruzar-nos os poros.
Seriam umas duas ou três da tarde e nós sentíamo-las cres-
cendo a toda a nossa volta. Qualquer que fosse a perspec-
tiva, as trevas bifurcavam-na: daí a sensação de que, apesar
de a noite também se desprender das coisas, havia nela algo
de essencialmente humano, visceral. Como instantes exte-
riores que procurassem integrar-se na trama do tempo,
sucediam-se os relâmpagos: era a luz da tarde, num ester-
tor, a emergir intermitentemente à superfície das coisas. Foi
nessa altura que a visão se começou a fazer pelas raízes.
As imagens eram sugadas a partir do que dentro de cada
objecto ainda não se indiferenciara da luz e, após compli-
cadíssimos processos, imprimiam-se nos olhos. Unidos aos
relâmpagos, rompíamos então a custo a treva nasalada.

Luís Miguel Nava
in Vulcão, quetzal ed. 1994

terça-feira, outubro 25, 2005

arderam-se-me...

arderam-se-me as sandálias
pelo toque julgo cinza
ao pó que é pólen
das magias creio em sementeiras
aborreço-me no deslumbre
galgo o estreito carbonífero
quero mais do que pequeno lume
aí vem ela estou certo persegue-me
a centopeia cleptomaníaca
com um baralho de cartas
distribuídas pelos apêndices
[traz o horror das visões

Porfírio Al brandão
in Lugares Unguentam Almas
pré-publicação 2005

Goya (1920-23)

segunda-feira, outubro 24, 2005

arde a mão...

arde a mão esse mineral
caído do forno pra elevar
o percentil do muro às loucas
cabeças em agrupamento
junto ao foco oblíquo

quanto aguçada a grande estalactite
ameaça auscultando os pulsos que
indefesos sussurram vida

Porfírio Al Brandão
in Lugares Unguentam Almas
pré-publicação 2005

Paul Klee (1921)

domingo, outubro 23, 2005

contar extinção...

contar extinção por contágio
ascensão hormonal à escadaria
do homo sapiens recolocado
no distrito (i)mundo
lavando as mãos no ranho
que as cristaliza criminosas
para nos comparsas dar
palmadinhas nas costas e lhes
almoçar timos fígados e baços
regados de adrenalina
sim este é o souvenir de cristal:
multiplicam-se ridículos os infectados
e o vírus engorda dentro deles
esticando-lhes o sorriso

Porfírio Al Brandão
in Sombras Ombreiam Lugares
pré-publicação 2005

Egon Schiele (1912)

RIFÃO QUOTIDIANO

Uma nêspera
estava na cama
deitada
muito calada
a ver
o que acontecia

chegou a Velha
e disse
olha uma nêspera
e zás comeu-a

é o que acontece
às nêsperas
que ficam deitadas
caladas
a esperar
o que acontece

Mário-Henrique Leiria
in Novos Contos do Gin
ed. estampa 1973

sábado, outubro 22, 2005

António Palolo (1986)

as covas...

as covas da garganta são como poema parado
fêmeas que são pequenos ventres lavados de pólen.

Cristina Néry
in O Ciclo das Sedas
palimage editores 2005

sexta-feira, outubro 21, 2005

eu só-

Mário Cesariny

eu só-
lido comi-
do de dor-
m'ir eu so-
çobro inté flo-
rir amor
Porfírio Al Brandão
in Lugares Unguentam Almas
pré-publicação 2005

MÃOS

um mole cedia
macia era aquela pele que agarrava
os pêlos

Madalena no escuro
a melhor
a mais simples

no silêncio na pele agarrava
a minha
a dela
toda

calças
dedos
aplicados
enrolei

a mama toda aberta
os dedos depois
como nuvem

a palma e os dedos
por cima
sem forma

os dedos
um no outro tocando-se
de cima
de mim
redonda

no escuro
na vulva
cedendo

peles escorregando
líquido
largo

sob o dedo encontro
a carne

sentem pelos nós
as unhas
nascentes

minúsculas
chupando o dedo
as nádegas minúsculas

o dedo descaindo
apontado
exterior

Álvaro Lapa
in Balança, &etc 1985

quinta-feira, outubro 20, 2005

a três corpos...

a três corpos omisso
sei-me a cancelar a travessia
e enegrece o assunto
definha longe à margem do erro
ao sinal do eco pontiagudo
que interrompe o coito imobiliário
a nenhum corpo noviço
uma carcaça da mais alta elite
a drenar saliva postiça

Porfírio Al Brandão
in Sombras Ombreiam Lugares
pré-publicação 2005

Frida Kahlo (1938)

quarta-feira, outubro 19, 2005

brigo contigo uma dentada...

brigo contigo
uma dentada rigorosa faz-me rígida morna
desfaz-me arruína-me risca-me
um riso na anca anavalho-te
sou tua em minerais. devolve-me
a abundância. sou a rocha do teu penedo.
racha-me. possui-me como aos animais.
ao largo. à chuva. no prado.
sem medo nos ossos. com medo das rosas.

Isabel Mendes Ferreira
inédito 2005

A BOCA AS BOCAS

Apenas uma boca A tua boca
Apenas outra A outra tua boca
É primavera E ri a tua boca
de ser Agosto já na outra boca

Entre uma e outra voga a minha boca
E pouco a pouco a polpa de uma boca
inda há pouco na popa em minha boca
é já na proa a polpa de outra boca

Sabe a laranja a casca de uma boca
Sabe a morango a noz da outra boca
Mas que sabe entretanto a minha boca

Que apenas vai sentindo em sua boca
mais rouca do que boca a minha boca
mais louca do que boca a tua boca


David Mourão-Ferreira
in Música de Cama
editorial presença (2ª ed.) 1996

Danuta Wojciechowska (2005)

terça-feira, outubro 18, 2005

NOITE-MÃE...

NOITE-MÃE grito-te ó claustro fundente
secam as horas brilham os minutos
e num segundo fervo éguas brancas
espasmos de vísceras salpicados neste

pão branco que parto à mesa
alumiando vultos que colhi na clareira estelar

por desarmarem-me a pele
ANTESONHO minha estação motriz
cordilheira surda dos sete degelos
canto-te ó neblina óssea que
com incenso fecundo envolves
beijos podres do sol
a marinarem-se baços: bagas serôdias
balas soporíferas ocupando as câmaras
do revólver fálico que ferirá de luz
a vulva lunar


Porfírio Al Brandão
in Lugares Unguentam Almas
pré-publicação 2005

Ana Maria Galvão (2001)

Levantar-me...

Levantar-me de encontro às hélices,
ter na voz ímanes e facas radiais.


O nome ascende à garganta
como uma dança fechada,
é o lume correndo entre a limalha,


um clarão nas virilhas do relâmpago.

Jorge Melícias
in A Luz nos Pulmões
quasi edições 2000

segunda-feira, outubro 17, 2005

a galope...

a galope invadem-me
são víveres em metamorfose
animais verdes a perderem
pernas
que ao rastejarem
animam-me o corpo

e eu danço: são víboras

Porfírio Al Brandão
in Sombras Ombreiam Lugares
pré-publicação 2005

Paula Rego (1964)

LMN INÉDITO

Havia pessoas cuja voz as enchia de areia, eram o deserto, uma longuíssima extensão de areia onde só a carne se ateava sob o sopro da ignorância.

Luís Miguel Nava
in O Livro de Samuel
relâmpago n.º16 2005

domingo, outubro 16, 2005

Homenagem a António Maria Lisboa

Carlos Calvet (1997)

VARECH

Eu estimo sobre tudo os teus olhos incolores
as tuas mãos inúteis, a tua boca verde

Eu falo somente dos relógios caídos, dos autocarros

Eu falo somente dos pés vermelhos

Eu falo... eu falo... eu falo...

No vigésimo século as nuvens são árvores
e os pássaros mais pequenos grandes paquidermes

Sim, é verdade, os cabelos loiros

Então, meia-noite!

Senhora, se me dá licença, este dia acabou
por este dia
simplesmente

A criança é porca, é inútil

Muito obrigado.

António Maria Lisboa
in Poesia, assírio & alvim 1995

à barriga...

à barriga da árvore
acorrem assombrados dentes
e suplicam rangentes
musicam doentes
sempre crentes
no rebento que ela há-de parir

Porfírio Al Brandão
in Sombras Ombreiam Lugares
pré-publicação 2005

MUNCH(IDO)

sábado, outubro 15, 2005

boca em...

boca em flecha ou
agulha abrindo
ao insecto a
janela do estame
qu’entulha vida
áspera quanto baste
neste certame
Porfírio Al Brandão
in Sombras Ombreiam Lugares
pré-publicação 2005

Mário Henrique Leiria (1950-51)

SONETO XIII

0
[ATENÇÃO: este soneto do séc. XVIII
poderá chocar os mais sensíveis;
tome as devidas precauções:
use preservativo!]

É pau, e rei dos paus, não marmeleiro,
Bem que duas gamboas lhe lombrigo;
Dá leite, sem ser árvore de figo,
Da glande o fruto tem, sem ser sobreiro:

Verga, e não quebra, como zambujeiro;
Oco, qual sabugueiro tem o umbigo;
Brando às vezes, qual vime, está consigo;
Outras vezes mais rijo que um pinheiro:

À roda da raiz produz carqueja:
Todo o resto do tronco é calvo e nu;
Nem cedro, nem pau-santo mais negreja!

Para carvalho ser falta-lhe um V;
Adivinhem agora que pau seja,
E quem adivinhar meta-o no cu.

Manuel Maria Barbosa du Bocage
in Poesias Eróticas Burlescas e Satíricas, ERL 1991

sexta-feira, outubro 14, 2005

RECADO

ouve-me
que o dia te seja limpo e
a cada esquina de luz possas recolher
alimento suficiente para a tua morte

vai até onde ninguém te possa falar
ou reconhecer - vai por esse campo
de crateras extintas - vai por essa porta
de água tão vasta quanto a noite

deixa a árvore das cassiopeias cobrir-te
e as loucas aveias que o ácido enferrujou
erguerem-se na vertigem do voo - deixa
que o outono traga os pássaros e as abelhas
para pernoitarem na doçura
do teu breve coração - ouve-me

que o dia te seja limpo
e para lá da pele constrói o arco de sal
a morada eterna - o mar por onde fugirá
o etéreo visitante desta noite

não esqueças o navio carregado de lumes
de desejos em poeira - não esqueças o ouro
o marfim - os sessenta comprimidos letais
ao pequeno-almoço

Al Berto
Horto de Incêndio
assírio & alvim 1997

Cruzeiro Seixas (1997)

EXPLICAÇÃO DAS MARÉS

O navio atravessa o sentido dos corpos

As casas vomitam a luz pela janela
Do enjoo das casas naufragam
As mulheres

Daniel Faria
in Explicação das Árvores e de Outros Animais
fundação manuel leão 2002

quinta-feira, outubro 13, 2005

a pseudomão...

a pseudomão empesta-me
nódulos nutridos com o suco medular
do caroço freático sangrante
núcleo duro da viagem
mas efervescente aonde
transbordante se me assiste
a velocidade

Porfírio Al Brandão
in Sombras Ombreiam Lugares
pré-publicação 2005

OSMOSE

o papel da terra consiste em
trucidar a matéria dos vivos

hélio T.
in textos de execração
angelus novus 2004

MA MAISON DE MA NUIT...

Ma maison de ma nuit de lumière
c'est le jour rectangulaire du monde
c'est mon petit vêtement de satin de chevalier splendide
c'est la superfice infinie de ma vue
de la vue d'une poupé de toutes les couleurs
c'est la voiture du voyageur voyant

Fernando Alves dos Santos
in A Intervenção Surrealista
(org. MC) assírio & alvim 1997

quarta-feira, outubro 12, 2005

cómico isto de...

cómico isto de
subir a haste
duma deixa sem
manchar a mínima
renda na gotícula
isto de roubar sonhos
ao soar o orvalho
e entre as palavras
tão só e desprecavido
a roubá-los de novo
cómico isto de
imolar uma boca


Porfírio Al Brandão
in Sombras Ombreiam Lugares
pré-publicação 2005

.onde se geram filhos

.onde se geram filhos
as flores são chupadas sucessivamente baças
como testas de crianças que cheiram a espuma.

Cristina Néry
in O Ciclo das Sedas, palimage editores 2005

eu li pcd

eu li pcd
anos depois
dos abutres das janelas

obrigaram-me a dizer notícias
e a proferir discursos
fotocópias de um qualquer
correspondente literário

os olhos no útero de um peixe
a vida rasgou trevas

no verão de oitenta e sete
o mercúrio desceu
no espírito da terra

continuavas o teu filme
onde havia tigres
a matar pela sobrevivência
um fascínio das figuras
chamava as crianças

eu fui um animal agonizante

m. parissy
in mãos de arquipélago
black son editores 2003

REGRESSA...

Regressa morte
às coisas distendidas de presente
morre a tensa presença
do regresso
morde o sangue os objectos
a distensão dos dentes
o presente a sangrar dos que regressam
a objectiva em riste dos desígnios
regressa
com as coisas intensas dos que sangram
com o presente vivo dos perigos
as feridas o mar o indistinto
distende os olhos dos vivos
estende na terra o olhar inútil dos mortos
o hálito livre dos mortos
regressa morta
à pele mordida de noites e perigos
regressa
e morre

Gastão Cruz
in Os Nomes, assírio & alvim 1974

terça-feira, outubro 11, 2005

A CANALHA

Como esta gente odeia, como espuma
por entre os dentes podres a sua baba
de tudo sujo sem sequer prazer!
Como se querem reles e mesquinhos,
piolhosos, fétidos e promíscuos
na sarna vergonhosa e pustulenta!
Como se rabialçam de importantes,
fingindo-se de vítimas, vestais,
piedosas prostitutas delicadas!
Como se querem torpes e venais
palhaços pagos da miséria rasca
de seus cafés, popós e brilhantinas!
Há que esmagar a DDT, penicilina
e pau pelos costados tal canalha
de coxos, vesgos, e ladrões e pulhas,
tratá-los como lixo de oito séculos
de um povo que merece melhor gente
para salvá-lo de si mesmo e de outrém.

Jorge de Sena
in Dedicácias, três sinais 1999

ESFOLHA-ME

esfolha-me
fole a fole
olhas-me
folhas e
medo
Porfírio Al Brandão
in Sombras Ombreiam Lugares
pré-publicação 2005

segunda-feira, outubro 10, 2005

ABREM AS FILHAS

Abrem as filhas
pelo ventre - sob o lêvedo
a contorção benévola das
cânulas.

em volta

os animais ungem a
cegueira com
toda a dor das fêmeas
por dentro. as mãos

de fogo na cara orquídeas dobrando a fala.

Pedro Gil-Pedro
in animais cheios de movimento no inverno
quasi edições 2002

DERRUBADO ESCUTA

derrubado escuta
a lei do microscópico
vento
sob a lisura ensan-
de[s]cida do granito
endospérmico
e lê a bivalve cor a rasgar-se
violenta sobre seu rosto

de papiros apodrecidos

Porfírio Al Brandão
in Sombras Ombreiam Lugares
pré-publicação 2005

NONSENSE WEEKEND (REPRISE)

Domingo urbano,
bebé impaciente
numa cadeira de rodas
boca-esgar
olho de peixe a tiracolo; ao pescoço a chapa militar de matrícula.
A irmã corista deu o máximo num
show de esquina.
«Pára! pára!» grita a mulher do automobilista, que liga
os faróis em vez da intuição.
Dedos, antes no nariz, esmagados
no rodado... Discute-se.

Paulo da Costa Domingos
in Carmina, antígona 1995

CICLO REAL

canta passarinho, canta
que as tuas vísceras se desvanecerão
na hospitalidade das maliciosas larvas

que a tua carne fresca alimente esses
escravos da morte

e enquanto que o sangue te corre
nesse teu bico inóspito
que os teus dejectos

se transformem no alimento

indigesto para os teus descendentes

Oluap Snitram
inédito 2005

domingo, outubro 09, 2005

HÁ ALGO DE...

há algo de oceânico no cíclico rumor do vento atravessando
em sucessivas vagas a recente folhagem dos plátanos

António Gil
in A Céu Aberto, difel 2002

NA SUA...

na sua insidiosa
inocência partiu a
matéria da lucidez fez-se
terra e pálpebra
silvestre... depois vieram
as horas tão brancas
como o fogo da língua.

Mendes Ferreira
in www.cidadedosobjectos.blogspot.com 2005

sábado, outubro 08, 2005

MOSCA SUGADORA

trevo de quatro corações
ferida sanguinária
fonte de prazer
para o insecto sedento

que enchas as tuas
merdosas asas
e te leve a uma
fatalidade desejada

portador da morte
penetras a tua agulha
pela vasta podridão
e infectas a frescura

da carne viva

Oluap Snitram
inédito 2005

PORQUE ÍRIS...

porque íris de passagem
iria envolver paralisia e sombra
em crasso porquê da imagem
que à paragem do arco
um estridente quê

lhe ferisse os pés?

Porfírio Al Brandão
in Sombras Ombreiam Lugares
pré-publicação 2005

LIVRO DA MEMÓRIA

Superfícies intensas as da memória
quente contra o silêncio
do íntimo da casa das palavras.

Súbito cai o mel e uma pequena nascente
uma luz mais luminosa
rodeia o olhar infuso
confundindo-se na humidade do coração.

No pulsar das carótidas
acende-se então o lume
a pique dentro da casa
a pique dentro da fonte.

Martim de Gouveia e Sousa
in Crepúsculo, Jornal do Centro 29/07/05

de TRÍPTICO NÓMADA, I - NOVA-IORQUE, UM

9
apenas o ar, dedos
enfiados no anel manejando o arame visível, até
as fezes do néon finalmente dissolvem
penumbra, o cacho «meramente,
aperta nos lábios uma saliva incómoda

10
espalhando o alcatrão por sobre a zona
entre as nádegas o cuspo mais facilmente seca
a viúva que o gelo conservou sem perca
«ao frio,

outras
agarrando nos dentes a pedra portátil
espera que o mundo caminhe ao contrário
em direcção ao esperma deixado
vagina sem mãe.

António Franco Alexandre
in Poemas, assírio & alvim 1996

.quando a terra se some...

.quando a terra se some há a decifração do medo
e lugares alucinados e divindades ciciadas
e muitos tigres nas fracturas ilegíveis
nos olhos prateados subitamente por dentro.
beijar as bocas é metade do sol
como sangue
sangue se o sangue faz comer estrelas brancas
que nascem e levantam saias como quem derruba flores.
quando as luas se praticam a si mesmas
como se políramos a jóia numa golfada
pudera ser uma abertura
e o medo dos anéis de mármore
brilhando as distâncias mentais.
há sempre um centro nas imagens como um instrumento que é

[enorme cantar.
Cristina Néry
in O Ciclo da Sedas, palimage editores 2005

DISSE-ME O...

disse-me o nome
e eu o disse ao de leve
pois que a sobra
circunscreve a moda dum
pronome ao telefone
ébrio letreiro que
incomoda a febre

do cone cavalheiro

Porfírio Al Brandão
in Sombras Ombreiam Lugares
pré-publicação 2005

1º POEMA DO DIÁRIO FLAGRANTE [Excerto]

E pela noite
uma estátua desce o pedestal para espreitar nos bares,
e pela noite
(já não quero nem mais noite nem mais dia)
conta milhões de vidas sobre mim
e quer-me lá vidro escaldante
criando um superfície
onde os teus passos fiquem marcados
como problemas que do meu corpo
e em sono
são todo o silêncio de uma praia.

Fernando Alves dos Santos
in A Intervenção Surrealista
(org. MC), assírio & alvim 1997

sexta-feira, outubro 07, 2005

CUSPIR A CARNE...

cuspir a carne por ser nauseabundo
o seu odor bloco a bloco encaixado
já limbo sonoro onde se acama
OUTRÉM-GRITO a roer a casca
e encontrando branco o subterfúgio
disfarçado dizer subterrâneo pois
maldita e insurrecta a garganta engravida
de viscos e soberbas testamentárias
EU-QUEM a abocanhar o êxodo
à cauda da laranja morta
ainda amamentando a cobra
que desliza verde entre os seios

Porfírio Al Brandão
in Sombras Ombreiam Lugares
pré-publicação 2005

Desenho de AML a MHL (Paris 1949)

CÃO

Cão passageiro, cão estrito,
cão rasteiro cor de luva amarela,
apara-lápis, fraldiqueiro,
cão liquefeito, cão estafado
cão de gravata pendente,
cão de orelhas engomadas,
de remexido rabo ausente,
cão ululante, cão coruscante,
cão magro, tétrico, maldito,
a desfazer-se num ganido,
a refazer-se num latido,
cão disparado: cão aqui,
cão além, e sempre cão.
Cão marrado, preso a um fio de cheiro,
cão a esburgar o osso
essencial do dia a dia,
cão estouvado de alegria,
cão formal da poesia,
cão-soneto de ão-ão bem martelado,
cão moído de pancada
e condoído do dono,
cão: esfera do sono,
cão de pura invenção, cão pré fabricado,
cão-espelho, cão-cinzeiro, cão-botija,
cão de olhos que afligem,
cão-problema...

Sai depressa, ó cão, deste poema!

Alexandre O'Neill
in Poesias Completas, assírio & alvim (2ª ed.) 2001

quinta-feira, outubro 06, 2005

EXALTA-SE A...

exalta-se a força miúda dos tempos ao ritmo do quartzo
sempre que um desertor oculto em límbicos biombos de chita

[enlouquece.
Rui Baião
in Aqueduto, &etc 1985

FUMOS

como nos cascos os muros
perdem agudos os olhos

sob o golpe o murmúrio
escala-se o rosto
em que agudos os muros
os olhos
claros dedos

florestas inteiras incendeiam-se
nas mãos

Jorge Fragoso
in A Fome da Pele, palimage editores 2004

NA CIDADE DE... [excerto de «Palaguín»]

Na cidade de Palaguín
havia bêbados emborcando ácidos
e retorcendo-se em espasmos na valeta;
Havia gatos sedentos
que iam beber leite aos seios das virgens;
Havia uma banda de música
que dava concertos com metralhadoras;
Havia velhas que se suicidavam
atirando-se das paredes para o meio da multidão;
Havia balneários públicos
com duches de vitríolo – quente e frio
– a população banhava-se frequentes vezes...
Na cidade de paguín
havia Havia HAVIA

Três vezes nove um milhão!

Carlos Eurico da Costa
in A Intervenção Surrealista
(org. MC) assírio & alvim 1997

quarta-feira, outubro 05, 2005

NO INÍCIO

que projecto se joga

que préjogo se injecta

que sujeito se toca

que variável se troca

que linha só resta

recta?


E. M. de Melo e Castro
in As Palavras Só-lidas, livros horizonte 1979

A LOUCURA DO BESOURO VII

Dias gotejando plasma entre dedos quentes.
Ciclo convulso onde sobra pão
e morrem girassóis.
Tartaruga inerte sobre um infinito pavimento
vazio.

Cai um fruto maduro
o húmus estremece
sangra.
Cabeça inclinada sobre a harmonia dos seios
simulacro breve
a quebrar a sépia dos dias.

Sobre o diagonal rosto da chuva
poemas.

Alcina Marques de Almeida
in A Quarta Sedução, palimage editores 2003

II. E ERA UMA VEZ ESTE...

E era uma vez este homem
que era um chevrolet
casado com uma mulher de vidro
que era uma colher de prata
Tempos depois sobreveio uma zanga
que era uma criança nua
entre umas tábuas de passar a ferro
e dois elevadores lindíssimos

Metrónomo (disseram eles)

Verdadeira saudade pernilonga
o pára-raios pôs-se a esfardar romanticamente o toldo
de uma máquina de escrever disposta para o amor às quatro no
interior de um quarto
que era uma planície redonda semeada de vírgulas violeta
com um pequeno garfo nas costas
que era o amanhecer que é uma árvore
na boca de uma mosca de veludo rosa

Metrónomo metrónomo (disseram eles ainda)
é uma árvore é uma pedra que vai começar o terceiro canto?

É a aflição dos outros, meu amor.

Lembro-me de tudo como se fosse hoje
as crianças brincavam nos jardins
com um pequeno garfo nas costas
sem dúvida o mesmo de há bocado
e até era domingo vê lá tu
de repente apareceste muito devagar a meu lado
arrastando sem esforço dois aparadores baratíssimos
ai! minha tristeza não era uma barca
breve houve lapidações em série
com um ligeiro clic de chaufagem aberta
todos os meus irmãos começaram a andar velozmente para trás
pobres dos meus irmãos que será feito deles e de nós que fizemos?

Impossível saber-se até onde irá connosco a nossa confiança
Ficaste, mão que aperto todas as manhãs para atravessar incólumes
os espaços vazios
Ficaste, peito sangrento do mundo largada para o sol entre os bichos
e eu
meu único amor meu amor meu múltiplo amor meu
tu que és uma mesa redonda enamorada dos seus próprios círculos
um alcaide sem discos um maço de cigarros
que se descobriu flor
que se descobriu água
que se abriu de repente
que gritou de repente
que implantou na minha vida de repente a carola perfeita
da desorganização

Não me encontrarás como um anel na curvatura I - Z do teu dedo
mindinho
nem na treva que exalta os teus cabelos
nem no espantoso hall da tua testa fechada iluminadíssima
encontrar-me-ás numa nuvem de escamas milimétricas em torno da
tua boca
com toda a força principal na boca
ou nesta casa que é um homem morto
rodeado de rostos sempre translúcidos

- Onde está o homem que era um chevrolet
casado com uma vírgula de amianto?
Certo e sabido que anda sobre as águas que o matei sem querer
estas estrelas brilham com tal nitidez
que acabam sempre por tornar-se suspeitas

Não importa transfigurá-lo-ei em poderoso egípcio

Abracadabra! Vram! Abracadabra!

Os teus olhos estão belos como a lua dos rios exteriores

Mário Cesariny
in pena capital, assírio & alvim 1999

terça-feira, outubro 04, 2005

SOL-E-DÓ [manuscrito de Pedro Oom]

ELES TRAZEM...

Eles trazem éteres pestilentos sémens em inúmeros
bolsos. Violadores solitários ou doadores de
lições – esses abomináveis deuses! –.

Isabel de Sá

in O Festim das Serpentes Novas, Brasília editora 1982

UNHAS

Unhas
moles e sujas
sulcam
paredes e camas
e a boca dos outros

Unhas
usadas sem abuso
abusadas sem uso
preventivas
suficientes
e necessariamente
afagam
muros murados
tapumes polidos

Unhas
unhas de tudo
unhas para todos
em première
em contágio
pacíficas
honestas
e autografadas

Unhas
unhas para esperar
unhas para ficar
ficar e desesperar
apodrecer e continuar
o desespero desunhado

Marcelino Vespeira
in A Única Real Tradição Viva
(org. Perfecto E. Cuadrado), assírio & alvim 1998

segunda-feira, outubro 03, 2005

O DAMASCO DA NOITE...

O damasco da noite, um corvo
negro na quadriga de prata.
Esperar em vão esse pasmo frio.

Eduardo Pitta
in Marcas de Água, INCM 1999

O GARFO AMOROSO

E DO ESPANTO II

consagraram-me
ao espanto
que de minúsculo há
no mar
e ímpar sobre a pele

criança
circuncidada a fogo e morte
(no céu da boca a memória absurda
das abóbadas)

mais
que na cidade
a matriz
dos arranha-céus líquidos

muito mais
que nos cartões
as clandestinas chagas
digitais

o espanto permanece
por frestas e
por ombros
qualquer
onde e
quando

Luiza Neto Jorge
in Poesia, assírio & alvim (2ª ed.) 2001

domingo, outubro 02, 2005

DE «A ESCAVAÇÃO DOS TÚMULOS»

1.
crucificação dos animais.

só a morte
purifica
sabemos
e o vento sobre a neve.
inebriante
o perfume
do sangue
em cascata rasgando
o silêncio húmido da manhã.

2.
o espectro da morte, diz-nos
a serena face fulgurante das palavras que buscamos
por entre as pernas suadas das fêmeas.


Alexandre Aroso
in A Escavação dos Túmulos, em pré-publicação 2005

DO SILÊNCIO SAÍRAM...

do silêncio saíram quatro gatos. todos
com pêlo. todos miantes.
e fizeram o teorema do pitágoras
depois de picados pelo aguilhão da tarântula.
hélio T.
in Gabravo, Artdomus 2002

SEMPRE COMO BICHOS...

sempre como bichos, os
cabelos na sopa coçados
de sujos, elas e os
filhos à mesa, bocas
desprovidas umas das outras, e eles
avisam que o tempo virá
mais tarde, convictos, elas
já restos da refeição, por
vezes nem bichos, os filhos
tortos do diabo latindo
casa fora
valter hugo mãe
in a cobrição das filhas, quasi edições 2002

A MESA É...

a mesa é azul. circular o tampo
lacado de penas e gordura. estendes os braços e o pano
encolhe-se dentro da mãe. o guizo
anila a nódoa da água.

era uma vez um limão voador
Emanuel Jorge Botelho
in Boomerang, frenesi 1985

OS FUNERAIS SÃO...

Os funerais são o casamento dos mortos

casam sem par no cheiro das flores

vão bonitos até,

elas escondias de grinaldas
eles viris nas barbas feitas,

jovens no meio das mães em procissão.
Alexandre Nave
in Columbários & Sangradouros, quasi edições 2003

AS CADEIRAS ARDIAM... [excerto de Poemacto]

As cadeiras ardiam nos lugares.
Minhas irmãs habitavam ao cimo do movimento
como seres pasmados.
Às vezes riam alto. Teciam-se
em seu escuro terrífico.
A menstruação sonhava podre dentro delas,
à boca da noite.
Cantava muito baixo.
Parecia fluir.
Rodear as mesas, as penumbras fulminadas.
Chovia nas noites terrestres.
Eu quero gritar paralém da loucura terrestre.
– Era húmido, destilado, inspirado.
Herberto Helder
in Ou o poema contínuo [súmula], assírio & alvim 2001

sábado, outubro 01, 2005

A REFEIÇÃO

aberta a boca enorme
[lábios frios sem almofadas]
come o vício.
COMÍCIO – o ovo estrelado arrasta-se pelo mundo,
voo atrelado que se castra;
surriada de ondas viscosas da clara mal cozinhada.
a cara enfadonha discursa – o peixe
nada
sobre a planície irritável da fome
no mundo cujo estômago ajusta a seu bel-prazer
a coroa de espinhos.
nuvem negra da peste sobre a frigideira;
CARCINOMA – coágulo de sangue falso
a vaguear lento.
peixe cozido com ovo estrelado: meu lado sangra...
Porfírio Al Brandão
in Moral Canibal, palimage editores 2005

DIÁLOGO

– O que é o tempo?
– Um martelo de plumas.

– O que é a vida?
– A eterna ausente.

– O que é a família?
– Uma catástrofe. Loucura circular histérica com convulsões de paciência.

– Quem é Deus?
– Um pobre diabo.

– Que faz ele?
– Sobrevive sempre às suas vítimas.

– Onde mora?
– Num tinteiro.

– O que é Portugal?
– Uma cave cheia de mofo.

Ernesto Sampaio com João Rodrigues
in Feriados Nacionais, fenda 1999

CAL

Mom amante la mort / étoile de chaux vive (Georges Bataille)

A casa é o meu caixão de paredes.
A cabeça
Pelas paredes.
Habito
Cal
De parede.
(A melancolia dizimou-o
E sucumbe. Dizem.

Se for para o jazigo
Terá a sua pedra.)

Vasculham-me a alma.
A alma é cal.

José Emílio-Nelson
in A Alegria do Mal, quasi edições 2004

ARS EROTICA

Eu amo assim: com as mãos, os intestinos. Onde ver deita folhas.

Luís Miguel Nava
in Poesia Completa, Publicações Dom Quixote 2002

DECLARAÇÃO

Eu de barba branca a tiracolo
rodeado de fumo por todos os lados vadios
menos pelo lado do mar
com um incêndio à ilharga
e dois artelhos clandestinos
eu salvo miraculosamente para te amar e curar
e esperar o teu regresso glacial e escarlate
que escrevo poemas desde que um rato
me entrou prós pulmões e só por causa disso
eu que disse: há um cancro no mapa universal
e engenheiros, geógrafos, doutores se apressaram a negá-lo
eu da cintura pra cima de alcatrão e terror
e do umbigo pra baixo de quiosque chinês
eu não espero piedade obrigado

António José Forte
in Uma Faca nos Dentes, Parceria A.M. Pereira 2001

8. os lírios grossos...

os lírios grossos são pirâmides acocoradas
e a grande seda descascada dos uivos atravessados
fossem venenos as linguagens cíclicas os inícios dos anjos mudos
e serpentes gémeas as veias surdas em verso
para construir um perfil de linho que entrasse pela carne.

Cristina Néry

in O Ciclo das Sedas, palimage editores 2005

O VERMELHO E O VERDE

– De que cor é o vermelho?
– É verde.

– Quem é o teu pai?
– É o revisor do comboio para a lua.


– O que é a loucura?
– É um abraço solitário sorrindo para os meninos.


– Quem é Deus?
– É um vendedor de gravatas.
– Como é a cara dele?
– É bicuda, com uma maçaneta na ponta.


João Artur Silva e Mário Henrique Leiria
in Antologia do Cadáver Esquisito (por MC), assírio & alvim 1989

RECORDAÇÕES

A paz inalterável do amor gratuito que ninguém quer
a saudade sempre penetrante do amigo morto que ninguém quis
os flagelos para os outros e para sempre com os outros
os nossos irmãos inexplicáveis de perfis irreconhecíveis
a caligrafia escrita no tempo
tudo isto
talvez valha qualquer verdade que te disse
e me esqueci.

Henrique Risques Pereira
in Transparência do Tempo, quasi edições 2003